quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

“Cacos” de um discurso pornopoético


“CACOS” DE UM DISCURSO PORNOPOÉTICO: Ou, a triste alfaia de um “coração vacilante” da Alagoas-artística

Ricardo Maia

No livro “A Vontade Radical: estilos” (Companhia das Letras, 1987, 264 p.), mais exatamente no ensaio “A imaginação pornográfica” (1967), Suzan Sontag (1933-2004) analiza o tema sexual da pornografia – “não nos tribunais”, como ela própria com ironia situa o seu discurso, mas “na privacidade do debate intelectual autêntico”. Nesse debate ultra-liberal, ela identifica três modalidades de “pornografia”: 1) como um item na história social; 2) enquanto fenômeno psicológico (tido comumente como sintomático de deficiência ou deformidade sexual em seus produtores e/ou consumidores); e 3) uma “outra” pornografia que é aquela que representa uma “modalidade ou uso menor, mas interessante, no interior das artes.”

É nessa última modalidade que Sontag se posiciona para produzir seu ensaio. Neste, e com toda razão, ela diz que só aceita “o duvidoso rótulo de pornografia”, para esse gênero literário, por não haver outra denominação melhor. Sendo assim, ela define “gênero literário” como um corpo de obras de uma literatura já consagrada como artística, e no qual se verifica excelentes padrões estéticos. Daí porque, para ela, seria “razoável” chamar certos textos de “pornográficos”; isto é, aqueles “livros sujos” que, ao mesmo tempo, possuem crédito de literatura séria. E, além do mais, constituem “documentos” e/ou “curiosos bens” culturais. Bens estes, aliás, atribuídos por diversos pontos de vista a um sintoma psicopatológico de grupo, a doença totalmente cultural, ou seja, a uma herança maligna da repressão sexual cristã ou, ainda, à mera ignorância psicológica.

Esses pontos de vista, como sugere Sontag, estimularam a criação de uma “pornografia que é autêntica literatura”, na qual os personagens são dotados de “uma espécie de ‘psicologia’” que seria derivada, epistemologicamente, da chamada “psicologia da luxúria”. Uma psicologia com a qual Sontag sem dúvida contribui quando observa, de modo pertinente e conclusivo, que: “Em certos aspectos, o uso de obsessões sexuais como tema de literatura assemelha-se ao uso de um tema literário cuja validade bem poucas pessoas contestariam: as obsessões religiosas.” E acrescenta incisiva: “A pornografia que é autêntica literatura visa ‘excitar’ da mesma forma que os livros que revelam uma forma extrema de experiência religiosa têm como propósito ‘converter’.”

Em última análise, de acordo ainda com a pesquisa de Sontag, atribui-se também a “pornografia” a uma mercadoria social problemática, produzida para ser comprada por “adultos”, que representaria as fantasias da vida sexual infantil. Fantasias essas que seriam recordadas, ou mesmo revividas, pela consciência mais treinada – ou menos inocente – do adolescente masturbador. Neste ponto, a pesquisadora nos pergunta provocando mais ainda o debate que propõe: “Onde termina a fantasia (condenada por padrões psiquiátricos e não-artísticos) e onde começa a imaginação?”

Sontag, por sua vez, e não sem razão, atribui um caráter reducionista a todos esses pontos de vista epistêmicos, já que, segundo ela, “a avaliação e o exame racionais da pornografia são efetuados firmemente no interior dos limites do discurso empregado pelos psicólogos, sociólogos, historiadores, juristas, moralistas profissionais e críticos sociais.” E acrescenta criticando: “Tal padrão é mera hipocrisia, revelando, mais uma vez, que os valores usualmente aplicados à pornografia são, afinal, os pertencentes à psiquiatria e aos estudos sociais, mais que à arte.” Desse último ponto de vista, de acordo ainda com Sontag, “a exclusividade da consciência incorporada nos livros pornográficos não é, em si mesmo, nem anômala, nem antiliterária.”

Partindo desta observação crítica, Sontag define pornografia como “um dos ramos da literatura – ao lado da ficção-científica – voltados para a desorientação e o deslocamento psíquico.” Daí porque, para ela, os textos pornográficos são um “outro” gênero de literatura que se funda num modo diferente de “consciência”; ou estes são, também, uma espécie exemplar de “modos literários alternativos”; pois, segundo ainda Sontag, “a arte (e fazer arte) é uma forma de consciência; seus materiais são a variedade de formas de consciência.” E acrescenta: “Nenhum princípio estético pode fazer com que essa noção da matéria-prima da arte seja construída excluindo-se mesmo as formas mais extremas de consciência, que transcendem a personalidade social ou a individualidade psicológica.”

Desse ponto de vista, o verdadeiro artista, segundo Sontag, seria “o artista moderno exemplar”; aquele de atitude estética extrema; ou seja, “um livre explorador dos perigos espirituais” ou “um corretor da loucura” que, por isso objetiva: 1) Tornar sua obra repulsiva, obscura, inacessível ou, senão mesmo, não-desejada; 2) “efetuar incursões e conquistar posições nas fronteiras da consciência (em geral muito perigosas ao artista como pessoa) para relatar o que lá encontrou.” Mas sendo ele também indivíduo autônomo e situado em uma sociedade secular, a este artista é permitido se comportar diferentemente de outras pessoas. Além disso, como ainda escreve Sontag, “ao igualar a singularidade de sua vocação, ele pode ou não ser adornado com um estilo de vida de conveniente excentricidade. Seu ofício é inventar troféus de suas experiências – objetos e gestos que fascinam e encantam, não meramente edificam e entretêm (como recomendavam as velhas noções de artista). Seu principal meio de fascinação é avançar mais um passo na dialética do ultraje.”

Contudo, este artista é sempre dependente do público que ele ultraja. Sontag chega mesmo a afirmar que as “suas credenciais e sua autoridade espiritual dependem, em última instância, da consciência do público (seja algo conhecido ou inferido) sobre os ultrajes que ele comete contra si mesmo.” Daí a noção focada pela ensaísta de que a arte do “artista moderno exemplar” é, realmente, “um produto custosamente adquirido através de um imenso risco espiritual, cujo preço aumenta com o ingresso e a participação de cada novo jogador na partida, convida a um conjunto revisado de modelos críticos.”

Todas essas concepções servem a Sontag como fundamentação teórica para a sua defesa acadêmico-radical – não da pornografia “como ‘mera’ pornografia”, ou “como lixo de inexplicável extravagância”; mas, como uma suposta necessidade de “levantar a questão de saber se a pornografia e a literatura são ou não antitéticas”. Questão que, se respondida afirmativamente, implicaria, na opinião da ensaísta, “uma visão global do que é arte.”

Ora: esta “visão global” de arte implica, por sua vez, não só considerar os livros pornográficos como “obras de arte de interesse e importância” culturais; implica também, e principalmente, na derrubada de muros e fronteiras disciplinares ou departamentais. O que, em conseqüência, significa o reconhecimento “pós-tudo” de uma epistemologia complexa – e, portanto, verdadeiramente aberta e dialógica – que nos oriente a refletir sobre a artecomo sendo esta, ao mesmo tempo, construção, conhecimento e expressão. Essa epistemologia de vias transversais é, sem dúvida, a condição sine qua non para a ‘autenticidade’ do debate sobre a pornografia artística, pretendido por Susan Sontag em seu brilhante ensaio, – e também por mim, aqui, neste meu texto.

Daí a presença da expressão “pornopoética” no título, neologismo que, decerto, pode – e deve – ser correlacionado à noção de “pornopolítica”, de Arnaldo Jabor. Principalmente se isto servir para fundamentar, melhor ainda, uma leitura crítica das “paixões e taras na vida brasileira” das Alagoas, como diria Jabor, através da poesia alagoana de Ricardo Cabús.


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Em “Cacos Inconexos” (Inst. Lumeeiro, 2010, 166 p.), a poética de Ricardo Cabús (1964- ) é melancólica e lasciva de uma só vez. À sua leitura, se aplicam diversos conceitos. Noções de teoria literária e teoria científica. Por exemplo, a noção de “autor sintomático”, criada pelo crítico Afonso Romano de Sant’anna, talvez já se aplique a uma primeira leitura do seguinte verso do poema “Descarga”: “Minha loucura não cabe em um vaso sanitário”. Fragmento este (ou melhor, “caco”) que na certa é indicativo de uma persistente dúvida, no poeta, quanto à qualidade de sua própria poesia. Uma ‘caca’? Não, de jeito nenhum, mas “Um Caco Braviloquente [...] que Corta”...

Ora: mesmo quando “a luz da cidade” sorriso já “estufa o céu”, em condições de ultramodernidade, é essa mesma “loucura” que ainda, por sua vez, encena o “desejo infantil” e “desabrigado” do poeta de “que não tivessem caroços as melancias”: frutas exóticas, aquosas e fertilíssimas, que comumente são associadas aos miomas uterinos. “Sempre mantive uma certa distância das melancias, escreve Cabús; e acrescenta: “O vermelho de sua carne me atraía / Mas as melancias / apesar do vermelho / têm caroços”.

De fato subjetivo, essa loucura sintomatiza uma recusa (histérica?) da história que é típica do “Paraíso das Águas”. Sobretudo quando o poeta reafirma num outro verso dele, do já citado poema “Descarga”, que “A terra não é redonda”... E, note-se de passagem, é dos Marechais, dos machistas, dos “poetas loucos” – mas heterossexuais. Uma “terra” onde, por isso, “Ninguém muda o seu destino”... Aliás, nem pensa nisso! Pois, como nos conta o próprio poeta sobre o seu “destino” alagoano: “Quando a lua surgiu ligeira / No canto desse quintal / Tanto alumiou meu pau / Que Zefa ficou arteira / Querendo ser a primeira / Com nunca visto fervor / levou sem medo ou pudor e deu um grito felino: ‘Ninguém muda o seu destino, / nasceu pra ser trepador!’”

Mas, como observa poemando Marly de Oliveira, a “quintessência da poesia brasileira”, na opinião de Antônio Houaiss: “A Poesia é uma forma de compromisso com o Ser, / quem quiser esquecer ou esquecer-se / recorra ao ópio, ou outro equivalente. / A poesia açula, / a poesia cava no escuro / a poesia cava o poço / a poesia cava o abismo / cava a vida/a morte. / Ninguém sai ileso/livre / de sua leitura, / disperso no ar: / ler é uma forma de enredar-se.”

Note-se que quem primeiro lê o poeta é ele próprio. E assim, ao criar suas poesias, ou seja, ao escrevê-las lendo-as para si mesmo, Ricardo Cabús enreda-se na teia de significados poéticos que produz, enveredando por processos de transformação. Metamorfoses, por exemplo, entre o sexual e o social. Daí porque, para ele, “Ler um poema / é como penetrar uma mulher.” E Cabús diz mais, acrescentando em outras palavras: “Ler um bom poema / assim como a penetração / pode levar-nos ao gozo / Por isso ao final de um bom poema / precisa-se de tempo / para curtir, desfrutar, fruir, deleitar-se / Tempo pós-orgasmo”.

Nesse ínterim, o que a poesia cava na escuridão criativa de Cabús é mais que o poço de sua solidão humana ou mesmo biológica. Ela cava, inclusive e sobretudo, o abismo entre ele e a mulher desejada – isto é, o gênero e/ou osexo feminino. Pelo menos é o que indica a ambivalência poeticamente registrada, por sua espécie de pornopoética, nos versos de “Quem foi que disse?” e “Dialógica”: composições nas quais Cabús inventa, pós-modernamente, dramáticas antinomias que se contradizem “na inconstância do desejo”, em seu eu-poético, de genitálias femininas personalizadas: “Quem foi que disse que eu te amo? [...] Quem foi que disse que eu não te amo?” [...] “Eu quero uma buceta cabeluda / ou raspada [...] Pra fora com suas vaginas monologais / Eu quero uma buceta que dialogue”.

Na pornopoética de Ricardo Cabús, guinadas desejantes como estas, de 360° graus, que desestabiliza o leitor desavisado, virando-o de ponta-cabeça, são mais táticas e estratégicas que sintomáticas de um eu dividido; pois são também indicativas de um recurso criativo que é típico desse gênero literário. “A pornografia”, recitando aqui a definição de Susan Sontag, “é um dos ramos da literatura – ao lado da ficção-científica – voltados para a desorientação e o deslocamento psíquico.” Daí porque Cabús escreve: “Eu quero o caos / batendo em minha porta /entrando / devastando aos poucos / pouco importa o equilíbrio de seu ser”. Desejo esse, aliás, que se manifesta ao poeta num radical balanço de si que vai reverberar nos versos do poema “Não sei o quanto de mim sou Mulher”, no qual ele conclui: “Sei que de tanto gostar / carregá-la em mim / faz-me feliz”... ainda que, depois, retorne a perguntar-se incompleto: “Por que devo gostar do rouxinol?”

O peso de todas essas questões só é contrabalançado pelo amor necessário, sem jamais ter sido contingente, de uma verdadeira musa restauradora cheia de sapiência e brandura: Cristina de Macêdo, uma psicóloga e psicanalista potiguar que, vivendo há vinte e oito anos em Maceió, já há quase uma década é companheira do poeta alagoano. Não é por acaso que “Cacos Inconexos” é dedicado a ela com as seguintes palavras: “A Cristina / Que sabe juntar com carinho os / cacos que rebentam de mim”.

Como Cristina deve saber, por sua atitude sublime e exemplar, os “cacos” supostamente “inconexos” da despedaçada poética de Ricardo Cabús só se tornarão de fato inteligíveis – isto é, conectáveis – se for reconstituído, por exemplo, o “sambista fingidor” (que dança um “Samba aflito”, tendo “areia e sargaço aos [seus] pés”). E ao fazê-lo, deve-se reconstituí-lo exatamente como foi reconstruída, por pacientes arqueólogos, a máscara de jade de Lorde Pacal: o lendário senhor meso-americano que viveu e governou, plenamente, a civilização maia numa espécie de idade de ouro desse povo ameríndio.

Explico melhor: é que os “cacos”, só aparentemente “inconexos”, de Ricardo Cabús compõem, através de sua individualidade histórica, a face mosaicada da poesia em Alagoas; reforçando, assim, a noção chalesiana de literatura como verbo de um povo. O que implica não apenas desistir da ingênua distinção entre indivíduo e sociedade, mas, também, fundamentar uma leitura crítica na seguinte teoria weberiana: “O fluxo do devir incomensurável flui incessantemente ao encontro da eternidade. Os problemas culturais que fazem mover a humanidade renascem a cada instante e sob um aspecto diferente e permanece variável o âmbito daquilo que, no fluxo eternamente infinito do individual, adquire para nós importância e significação, e se converte em ‘individualidade histórica’.”

Mas, pelo que tudo indica, isso é tudo que o poeta menos quer, mais resiste ou mesmo não deseja (penso aqui com Freud). Pois o estrangeirismo cultivado (ou “cult”?), ao longo de toda a segunda metade do livro, só reconhece o já reconhecido, só louva o já por demais louvado e só traduz e publica o já traduzido e publicado em sua maioria. Sem falar, é claro, numa opacidade crônica que só resulta, como bem observa Arriete Vilela, em ardilosas armadilhas polissêmicas a gerar ambigüidades de sentido. Subjetivismo excessivo que, às vezes, torna-se chato e lamentável. Pois cadê, no livro de Cabús, as poesias caetés de seu “Varal” iluminado por seu Instituto “Lumeeiro”? Ou mesmo por sua “Luz e poesia” próprias, que, como “outros” destes mesmos valores locais, também “carecem de corpos sensíveis / para serem vistas”?

No entanto, parece que todas essas questões estão sendo pensadas, de modo radicalmente poético, mas à revelia do próprio poeta, nos seguintes versos de “Haicai” – e pensadas, note-se de passagem, para dar uma “Resposta ao tempo” (histérico e por isso estéril) da arte em Alagoas: “Verão acendendo / Cada pelo cada poro / Ascendendo ao nada”. Ou, ainda, nos versos de “Ocupar estranho” nos quais o poeta diz: “Faz-se do mundo um ocupar estranho / Fogo afoga / Água arde / A saudade abrocha as pétalas tornando botão / E a primavera tá nem aí” [...] E foi que o tempo / disse: Eu existo! / Mas ele não te vê / Eu te vejo / E te quero / E ele / Que vá pra merda!”

Os versos da primeira estrofe do poema “Passos errantes” talvez aludam, por sua vez, ao reconhecimento da equivocada metodologia, empregada pelo poeta na construção de seu livro, que esse enganoso estrangeirismo típico constitui; sobretudo, no contexto sócio-histórico – e, portanto, político-cultural – da arte em Alagoas. Mas o poeta reconhece: “Eu errei / De novo / me dissolvo / em passos errantes / após uma busca insana a uma Pasárgada quimérica.”

Veio na certa desse reconhecimento o impulso criativo para a construção do poema “Remanchando em Maceió” – verdadeira declaração de amor ao Paraíso das Águas alagoano: “Amo uma Jatiúca desnuda / pedras à mostra / E o branco espumado / que clareia ainda mais o verde ofuscante / de suas águas tépidas / Amo o cheiro das palhas do velho coqueiro / misturadas ao sargaço novo e úmido / que me dá forças para tolerar / o ruído dos carros, logo ali”. Aliás, bem ali onde a modernidade capitalística prospera ‘obstruindo’ a poesia e o poeta: “E nesta manhã de sol / Declaro: / Deixem-me o Céu! / Basta de elevações retilíneas / com seus concretos armados eretos /falicamente apontados ao zênite. / Que querem? / Penetrar a vagina de Vênus?”

Esse reconhecimento e essa declaração permitem identificar o autor de “Cacos inconexos” como um típico “bubo” – i.e., burguês boêmio – nesse efêmero Paraíso das Águas (penso aqui com David Brooks): “A boemia para mim é um acidente / Eu quero estar em casa / filosofando cada pentelho / iluminado pelos raios que transpassam / aquela cortina encardida”. Artefato doméstico, que, nesse estado de conservação indicado, parece simbolizar muito bem o desgaste histórico da ideologia esquerdista no seio de uma boemia literária local. Uma boemia alagoana que, em conseqüência da modernidade dos últimos tempos (penso aqui com Anthony Giddens), “PASSA PARA A FESTA FELIZ” – com todas as letras maiúculas... E desta, obviamente um boêmio local chamado “João” (um alter-ego do poeta?), sai “Amarfanhado”, “Cambaleante [...] e remansado” vendo “o vermelho descaminhar” pelo próprio corpo. O poeta recorda-se dele, antes da festa, nos seguintes versos de “Cardiolatifúndio”: “Ele era tão ateu / que não conseguia dizer / adeus / Tentava aprender a fazer reforma agrária / em um cardiolatifúndio”.

Aliás, o mesmo “Cardiolatifúndio” de um “coração vacilante” que, um belo dia, a Poesia invadiu. Invadiu e se apossou para nele, então, plantar as sementes do tempo da literatura em Alagoas (penso aqui com Fredric Jameson). Daí porque o poeta, vendo-se hoje mais centrado, escreve os seguintes versos que são indicativos do resgate, pela poética, de sua individualidade histórica: “Olho-me no espelho / e percebo sem alvoroço / quão foi árduo ao tempo / em suas vias / mostrar-se que os caroços / fazem parte / da vermelha carne / das melancias”. Pois, agora – sem mais aquela “ânsia” infantil ante o “trabalho de comê-las” (isto é, introjetá-las em si e para si), resta ao poeta apenas reconhecê-las aceitando-as como são: “As melancias são vermelhas / e têm caroços”.

Só assim, afinal, e para sossego do homem, o poeta recobrará, através da Poesia, uma antiga união com o que existe. Ou, pelo menos, a nostalgia desta. Pois isso é tudo o que Cabús nos indica – e não por acaso, em tom conclusivo ou resignado, no seguinte trecho do poema que dá título ao livro: “E eu que sempre cri no futuro / me vejo hoje perplexo / jogado em um chão escuro / percluso do amor / a juntar cacos inconexos.”

Mas, diante do “espelho” de sua própria poesia, o poeta-Cabús – um típico personagem atravessado e constituído pela dilemática sociedade alagoana, em transição, com seu modernismo do subdesenvolvimento (penso aqui com Marshall Berman) –, auto-ironiza: “Quem manda ter um coração vacilante”... Um coração que, por isso, nesses trópicos dos pecados capitalistas, sempre cai numa “suruba literária”: experiência simbólica-e-libidinal violenta em que ele escreve, inclusive, um “Poema evangélico” matando uma “traça” que “quer entrar”: “O demônio existe / Existe / E dúvida não tenho / Alguém em mim insiste / Que não / Mas o demônio existe / E não em vão / Se não pra que porra você [o hipócrita leitor, seu semelhante e irmão?] tinha que aparecer agora?”




OBRAS CONSULTADAS

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. 4ª reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

BOMFIM, Elizabeth de Melo. Contribuições para a história da psicologia social no Brasil. In: JACÓ-VILELA, Ana Maria; MANCEBO, Deise; ROCHA, Marisa Lopes (orgs.). Psicologia social: relatos na América Latina. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.

BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a arte. 3ª ed. São Paulo: Ática, 1989.

BROOKS, David. Bubos no paraíso: burgueses boêmios, a nova classe alta e como chegou lá. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.

CABÚS, Ricardo. Cacos inconxos. Maceió: Instituto Lumeeiro, 2010.

COTTERELL, Maurice M. Os superdeuses: sua missão era salvar a humanidade. São Paulo: Madras, 2001.

GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. 2ª reimp. São Paulo: EDUESP, 1991.

JABOR, Arnaldo. Pornopolítica: paixões e taras na via brasileira. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.

JAMESON, Fredric. As sementes do tempo. São Paulo: Ática, 1997.

OLIVEIRA, Marly de. Aliança. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979.

SANT’ ANNA, Affonso Romano de. O canibalismo amoroso: o desejo e a interdição em nossa cultura através da poesia. São Paulo: Brasiliense, 1984.

SONTAG, Susan. A vontade radical: estilos. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

WEBER, Max. A “objetividade do conhecimento nas ciências sociais. In: COHN, Gabriel (org.); FERNANDES, Florestan (coord.). Weber: sociologia. São Paulo: Ática, 1986.



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3 comentários:

  1. Menino, se eu tivesse lido esse texto antes, teria lido seu livro com outros olhos. Vixe...

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  2. Gostei muito do texto do Seu xará, Ricardo: informado, informatvo, bem escrito. Obrigada por compartilhá-loconosco.

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  3. Ricardo Maia, maravilhoso, vamos "tirar a literatura do pedestal"como diz o escritor Marcelino Freire.
    "Oh, Bendito o que semeia
    Livros...livros à mão cheia..
    E manda o povo pensar!
    O livro caindo n´alma
    É germe - que faz a palma,
    É chuva - que faz o mar." Castro Alves.
    Saudações literárias.
    Wilma Maria Lopes

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